quinta-feira, 19 de janeiro de 2012


A nova classe média e o mau gosto na música

De maneira melancólica e um tanto apressada, Nelson Motta conclui seu ótimo livro “Noites Tropicais” ao discorrer sobre a ascensão da música sertaneja junto ao gosto da classe média durante a era Collor, no início dos anos noventa. Híbrido entre documentário e autobiografia, “Noites Tropicais” é um instigante testemunho sobre os bastidores da música brasileira desde o surgimento da Bossa Nova, no final dos anos cinquenta, até a morte de Cazuza, no início dos noventa, que marcaria, na visão de Nelsinho, o fim do chamado “rock brasil”. Iniciou-se, ali, a era da música popular de mau gosto, que se estende até os dias de hoje e que desbancou a hegemonia da MPB e do pop-rock nacional e internacional no “mainstream” radiofônico, televisivo e discográfico brasileiro. Eu, que particularmente nem sou adepto da MPB, considero impossível comparar a qualidade musical de um Jorge Ben ou mesmo de um Gil com um Parangolé ou com um Vítor e Léo.

Assim como a moda, o gosto musical das massas geralmente se constrói a partir de uma imposição dos meios de comunicação, os quais, por sua vez, são regidos pelos padrões de consumo vigentes. É por meio da mídia que a maioria das pessoas passa a gostar deste ou daquele artista; assim se constrói o gosto musical, bom ou mau. A mudança do gosto musical da classe média atendeu basicamente à importante transformação da economia brasileira, que incorporou indivíduos que antes não consumiam simplesmente por serem mais pobres. Os novos padrões de consumo naturalmente atingiram a música como um todo, a partir da incorporação de ritmos e artistas que antes eram preferência apenas dos estratos inferiores. Ora, é nos anos noventa que o sertanejo de duplas, o pagode, o axé, o forró e o funk passam a liderar os rankings de música consumida nacionalmente, diferentemente do que ocorria em décadas anteriores. Eu me lembro bem, quando adolescente, de conhecer meninas que adoravam Guns ´N Roses e Bon Jovi e que, de um ano para outro, passariam a idolatrar Zezé di Camargo e Luciano e Leandro e Leonardo, jogando uma pá de cal em cima das bandas estrangeiras que tanto amavam até pouquíssimo tempo atrás.

Foi na década de noventa que o país paulatinamente assistiu à emergência de uma nova classe média e na década atual, com o êxito dos programas de redistribuição da renda, o fenômeno se acentuou ainda mais. Parte dos estratos classificados como “D” e “E” tem sua renda aumentada e passa a integrar as classes “C” e “B”, representando um novo e maciço mercado consumidor. A estabilização da economia com o Plano Real, o impacto do Bolsa Família e a consequente melhora na distribuição de renda -o que foi ótimo para o país, reconheça-se- produziu progressiva dilatação da classe média, o que, consequentemente, redundou na ampliação do escopo publicitário dos meios de comunicação. Em se tratando de Brasil, podemos resumir à televisão e à consequente venda de horários em intervalos comerciais a anunciantes dos mais diversos. Para atender à nova classe média, os canais de televisão tiveram de adequar sua programação a assuntos de interesse popular. Programas policiais, brigas de auditório e música outrora classificada como “brega” passaram a integrar gradualmente o “mainstream” televisivo, primeiramente em canais com menor audiência e, posteriormente, na própria Rede Globo. A classe média tradicional, que antes apreciava a MPB e o rock, passa a achar legal o Catinguelê e o Grupo Raça Negra, como num efeito-manada. Me lembro bem da dupla Claudinho e Buchecha, quando lançada e imediatamente classificada como MPB. Na Globo, praticamente todos os programas de TV, da Xuxa ao Faustão, passaram a convidar esses artistas, simplesmente porque eles vendem.

E a juventude, sempre refratária a esse tipo de imposição, também se rende ao novo “mainstream”. Hoje, temos o Sertanejo Universitário, que seguindo as palavras do mestre Lobão -com quem tive o prazer de tomar chope até altas horas em 2002- reflete uma atitude de burrice descomunal: gente que tem nível universitário não deveria ouvir isso, mas infelizmente é o que ocorre. Na mesma esteira, jovens da Zona Sul Carioca, berço da Bossa Nova e do Samba-Jazz, sobem o morro não para apreciar Cartola e seus inúmeros discípulos, mas para frequentar bailes-funk, atraídos pela curiosidade natural que tais eventos suscitam. Tudo bem, a batida do funk carioca pode ter lá seu ritmo e seu peso, mas as músicas são cantadas com péssima técnica, redundando em verdadeiros brados de ode ao crime, com letras de conteúdo abjeto e irracional. Não mais se contesta a ordem imposta com a irreverência do rock ou com os jogos de palavras da MPB. Ao contrário, desafia-se  a sociedade, com apologia ao que ela própria rejeita e repugna. Se o crime, hoje, é tão odiado quanto a falta de liberdade durante a ditadura, o funk carioca se comporta como se fosse, mutatis mutandis, um agente de propaganda do regime de 64.

Entre 1992 e 1997, tive a sorte de morar fora do Brasil. Por passar minha adolescência em Buenos Aires, aprofundei, como se argentino fosse, meu apreço pelo rock and roll e pelo blues. Quando vinha ao Brasil, geralmente nas férias de verão, analisava a mudança de gosto não com repugnância arrogante, mas com uma certa curiosidade ingênua e, obviamente, com grande pesar. Músicas que antes eram ouvidas somente no Carnaval passam a ser executadas 365 dias por ano, o que de fato cansa os tímpanos e esgota a paciência. Quando retornei, já na faculdade, custei a voltar a gostar de música brasileira e, até hoje, tenho que selecionar o que vou ouvir com cuidado e parcimônia. É difícil, mas dá para entender bem por que Nelson Motta conclui seu livro de forma tão triste e impaciente.

6 comentários:

  1. Caro Colunista,

    Sua análise da evolução (involução?) musical brasileira, explicada por meio de acontecimentos econômicos vai ao encontro, integralmente, de minhas suposições sobre o assunto. Tomo a liberdade, entretanto, de tentar retratar a complexidade maior do assunto, identificando elementos adicionais que talvez sejam parte da resposta.

    A piora na qualidade da música brasileira de massa é visível, mas não me parece que este fenômeno seja uma exclusividade brasileira, haja vista que nos EUA e na própria Argentina, mencionada pelo senhor, a qualidade musical da produção dos anos 80 e 90 é imensamente superior às das décadas seguintes.

    Estes dois países mencionados, entretanto, guardam diferenças importantes entre si e em comparação ao Florão da América no mesmo período. Com base nestas diferenças, supus haver um elemento adicional que forma essa visão (que partilhamos) sobre a qualidade musical superior da produção pré-meados-dos-anos-90: a idade do crítico. O rock (para ficar em um estilo que conheço melhor) dos anos 50 e 60 era muito bom, diria eu, excelente. Mas como dizer se era melhor do que o dos anos 80 e 90? E o dos anos 70? Muitos ouvintes, entretanto, fizeram essa comparação nos anos 90, sempre em detrimento de algum lado deste suposto "antagonismo". Ainda que, ressalte-se, eu me lembre de um Paul McCartney elogiando Nirvana! (gênio).

    Muitos garotos de hoje tem certeza absoluta que o neo-emo Green Day é a maior banda do mundo (com várias 'fases' em sua obra). Ou que Nickleback é rock 'n roll! Bons eram os tempos em que se podia desprezar um Bon Jovi! Um Bush (a banda, não os ex-presidentes, que podem continuar desprezados)!

    Um outro possível fator explicador (complicador?), dessa análise é o "complexo de vira-latas". Lembro-me de senhores, já na avançada idade de 30 e poucos anos, que nos anos 80 e 90 criticavam o rock Brasil. Essas mesmas pessoas criticariam o samba, o chorinho, a viola caipira? É tudo ruim porqu é brasileiro, ou há diferenciações? Sei que não é o caso do colunista, mas muitos daqueles que partilham nossas trincheiras em um argumento qualquer, às vezes, discordam mais de nossas opiniões do que os apreciadores de Beijo Moreno, Renan & Renato, MC Segura ou Pause-Reset.

    Já me alonguei demais nas elucubrações, mas é que a conversa é boa. Um tema para, talvez, conversas sob a influência tirânica de algumas sardinhas fritas com cerveja à beira-mar. Afinal, "é bom, passar uma tarde ao sol que arde..."

    Saudações e boas resenhas!

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    1. Caro Bleite, obrigado pelo comentário, tão bem-escrito e elaborado. Ressalto que meu foco é na sucessão dos gêneros musicais dentro do mainstream musical brasileiro e não na evolução ou involução intra-gênero, o que também é assunto para outros posts no blog e para conversas regadas a cerveja e tira-gosto sob o sol do Mediterrâneo ou de outros mares ao sul do equador.

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  2. da mensagem





    Sem dúvida, nos últimos tempos houve no brasil uma (positiva) ascensão das classes D e E para C e B. Particularmente, acho q bem mais na era Lula do q no período Plano Real-FHC (mas aí é outra discussão...). Mas acho preconceituoso atribuir a queda na qualidade da música brasileira a isso.... tem muita gente de classe A e B q ouvia Roberto Carlos muito antes dessa transformação social do país.... e o samba bom tem suas origens na classe D de muito antes do Plano Real....

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    1. Obrigado, Mari, pelo comentário. Não acho o Rei brega. Considero-o um grande artista dentro daquilo que propõe. Além disso, é um grande precursor do rock brasil, pois escreveu junto com Erasmo músicas próprias, numa época em que a maioria dos artistas jovem-guardistas cantavam versões em português de hits em inglês e italiano. Sobre a era Lula, concordo plenamente e fiz questão de editar o post para não deixar dúvidas. E, finalmente, quero deixar que a origem popular de um gênero não o condena e sim uma cultura de massas popular, o que é completamente diferente. Abraços!

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  3. Caro Juliano
    Muito interessante sua resenha.
    Eu compartilho a idéia que essa "involução" musical se deu pela ascenção das classes mais baixas da sociedade devido ao aumento de renda principalmente, e isso foi um fenômeno mundial como bem frisou o colega Bleite no comentário anterior. Lembre-se que nessa época se vivia o boom econômico mundial.
    Apesar de tudo ainda acredito que sempre haverá a boa música em qualquer situação, é lógico que não teremos tantas boas bandas ao mesmo tempo fazendo sucesso como ocorria nos anos 80/90 mas ainda ainda veremos uma luz no fim do túnel. O principal ponto talvez seja o de que o Brasil deve aprimorar seu sistema educacional, é através da cultura que a sociedade forma sua identidade, não adianta querer que uma pessoa vá preferir música estrangeira se ela não souber cantar ou entender a letra, desse modo é mais fácil e segura para ela cantar as músicas em sua língua nativa, o que faz com que tenhamos essas aberrações do Funk carioca, que nada mais é do que um espelho da língua falada por aquela fatia da sociedade, que desse modo se identifica como pertencente aquele nicho.
    Se voltarmos atrás na história brasileira veremos que apesar de todas as mazelas causadas pelo regime militar brasileiro, a educação pública era considerada uma das melhores opções de ensino, correto? Consequentemente tivemos grandes compositores de MPB que souberam colocar em música a repúdia que tinham pelo regime militar de uma forma sútil que na maioria das vezes conseguiam escapar à censura, para isso tem que ter uma educação boa, senão não se consegue isso (vide letras do Gonzaguinha e Chico Buarque). Essa mesma educação formou a base dos jovens que iriam se destacar no cenário musical nos anos 80/90 onde coincidentemente começa um declínio do nível de educação do ensino público e consequente migração para o ensino privado.
    Posso estar falando bobagens, porém esse é o meu sentimento.
    Espero que seu blog tenha uma vida longa e estarei acompanhando atentamente. Sucesso!

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  4. Obrigado, Paulo. Concordo que a massa crítica naquela época era muito mais politizada e engajada que a que existe hoje. Se por um lado ela se dilatou com a maior distribuição de renda, esse aumento quantitativo não foi acompanhado por um boom qualitativo, muito antes pelo contrário. Gostei das ponderações. Abraço!

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